Introdução

Fethullah Gülen: Sua Vida, Crenças e o Movimento Inspirado por Ele

A criação de Fethullah Gülen em um vilarejo no sudeste da Turquia, sua educação precoce e exposição às ideias de Said Nursi, mais tarde, sua participação nos círculos de leitura sobre Nursi e sua crescente fama como pregador na Turquia ocorreram dentro do contexto da história turca descrita no capítulo anterior. Além do seu treinamento nas ciências clássicas islâmicas, ele é um produto de sua nacionalidade turca e dos eventos políticos que influenciaram aproximadamente seis décadas de sua vida como cidadão turco. Neste capítulo, primeiro, introduzo o leitor àqueles aspectos da infância do Sr. Gülen que, depois, formaram suas ideias e planos de ação. Segundo, discuto as principais crenças, convicções e prioridades que guiaram tanto seus ensinamentos iniciais e posteriores. Terceiro, traço as origens do Movimento Gülen na Turquia e, depois, sua expansão para os países da antiga União Soviética e finalmente para o mundo todo.

A História de Vida de Fethullah Gülen

Infância

Fethullah Gülen nasceu quem 1941 em um vilarejo agrícola perto de Erzurum no oeste da Turquia. Erzurum era conhecida por ser culturalmente conservadora e por ter uma população muito devota. Apesar de haver poucas oportunidades para uma educação secular para o povo turco da época, os pais do Sr. Gülen enviaram-no à escola primária estadual mais próxima por três anos. Quando ele completou o ensino primário, seu pai, um imam[1], foi nomeado pelo Estado a uma mesquita em outra cidade onde não havia escolas secundárias. O Sr. Gülen, portanto, foi forçado a abandonar sua educação formal no meio do ensino fundamental e começou a receber educação informal, principalmente de seu pai.

O pai do Sr. Gülen, de quem ele aprendeu os elementos básicos do Islam assim como um pouco de árabe e pérsio, era um erudito assim como um imam. O Sr. Gülen lembra-se dele como uma pessoa que gostava de ler livros e constantemente lia o Alcorão, meditava diariamente sobre o Profeta Muhammad e os Companheiros deste e recitava poemas religiosos. Ele instilou esse amor pelo aprendizado e amor pelo Profeta e seus Companheiros em seu filho.[2]

O Sr. Gülen descreve a casa de sua primeira infância como uma “hospedaria para todas as pessoas instruídas e espiritualmente evoluídas da região”. Seu pai, em especial, recebia eruditos em sua casa com quem ele podia discutir questões religiosas. Nas palavras do Sr. Gülen: “Hóspedes, especialmente eruditos, estavam frequentemente em nossa casa. Nós prestávamos muita atenção em hospedá-los. Durante infância e juventude, nunca me sentei com meus pares ou pessoas da minha faixa etária; em vez disso, eu ficava sempre com pessoas mais velhas e as ouvia falar sobre coisas da mente e do coração”.[3] Por causa de contato precoce com eruditos e pensadores religiosos, o Sr. Gülen foi criado em um círculo de pessoas que estavam constantemente explorando a espiritualidade e seu lugar no mundo moderno.

A mãe do Sr. Gülen, que secretamente ensinava o Alcorão a meninas do vilarejo,[4] também o ensinou, assim como seu avô, que foi um de seus primeiros heróis. Uma década antes, Atatürk e o governo kemalista estabeleceram os seis princípios kemalistas, incluindo nacionalismo e secularismo. Apesar de mesquitas e orações serem permitidas pelo governo secularista, naquele período da história turca, todas as outras formas de instrução e prática religiosa estavam banidas. Contudo, os pais do Sr. Gülen, assim como muitos outros turcos, continuaram a tradição islâmica turca para garantir que ele aprendesse o Alcorão e as práticas religiosas básicas, incluindo as orações.

Outro professor influente na infância dele foi o Xeique Muhammed Lutfi Efendi, um professor sufista. Foi com ele e com outros mestres sufistas que o Sr. Gülen foi introduzido aos escritos de Said Nursi (1876-1960), um pregador que ensinava que muçulmanos não deveriam rejeitar a modernidade, mas encontrar inspiração nos textos sagrados para se engajar com ela.[5] Nursi desenvolvera ideias de um Islam moderno que insistia na necessidade de um papel importante para as crenças religiosas na vida pública, ao mesmo tempo em que abraçava simultaneamente o desenvolvimento científico e tecnológico. Os escritos de Nursi reinterpretam o Alcorão à luz da ciência e racionalidade modernas. Os objetivos do Movimento Nursi que surgiu de seus ensinamentos são: síntese do Islam e ciência; aceitação da democracia como melhor forma de governo no Estado de Direito; crescente nível de consciência islâmica, indicando a conexão entre razão e revelação; alcançar a salvação mundana e eterna em um mercado livre e por meio da educação.[6] Essas ideias inspiradas por Nursi foram muito influentes no início da educação do Sr. Gülen e tornou-se a pedra angular de seus ensinamentos e escritos posteriores.

Juntamente com seu estudo do Islam, o Sr. Gülen também concentrou-se em educar a si mesmo em ciência, filosofia, literatura e história. Ele ficava acordado até tarde estudando os princípios centrais das ciências modernas, como física, química, biologia e astronomia. Ele também leu filósofos existencialistas como Camus, Sartre e Marcuse, clássicos ocidentais incluindo Rousseau, Balzac, Dostoievski, Pushkin, Darwin e Tolstoy e fontes originais de filosofia oriental e ocidental, tanto islâmicas quanto não islâmicas.[7]

Primeiros Anos de Pregação

Quando adolescente, o Sr. Gülen foi introduzido aos círculos de leitura de Nursi e subsequentemente tornou-se um participante ativo. Diferentemente de tarikats, ou ordens sufistas, grupos de tais círculos sobre os ensinamentos de um erudito eram chamados cemaat. Uma cemaat é uma forma específica turca de auto-organização islâmica que evoluiu após a formação da República secular em 1923 e o banimento das ordens sufistas e a abolição de madraças (instituições clássicas de educação islâmicas). O fenômeno da cemaat surgiu dos círculos de leitura motivacional de cidadãos praticantes leais no contexto da pressão do governo a qualquer organização que poderia potencialmente questionar o novo regime politicamente. No caso dos círculos de leitura de Nursi, o principal tópico de discussão era como responder às demandas do mundo moderno com conhecimento islâmico para fazer o Islam compatível com a modernidade. A cemaat não tinha requerimentos formais de participação; portanto, não era uma ordem sufista, apesar de Nurse ter sido fortemente influenciado pelo poeta Rumi e outros mestres sufistas. Em vez disso, a cemaat consistia de pessoas que compartilhavam um discurso e objetivos comuns dentro da cemaat.[8] Quanto mais essas normas eram aceitas e quanto mais uma pessoa trabalhava para a causa da cemaat, mais forte era sua inclusão na cemaat.[9] Fethullah Gülen foi participante da Cemaat Nur, uma experiência que influenciou grandemente sua vida subsequente e os círculos motivacionais formados por seus próprios ouvintes e leitores. De fato, a chave para entender a organização social do Movimento Gülen está em entender a Cemaat Nur na qual Gülen foi socializado no início de sua vida adulta.

Os leitores, escribas e audiências do discurso de Nursi também estabeleceram dershanes, ou círculos de leitura, que se encontravam em casas privadas, normalmente constituídos de estudantes universitários que se encontravam regularmente para ler e discutir o Alcorão e outros trabalhos espirituais. As dershanes proviam “zonas de socialização religiosa no cenário educacional secular”.[10] Nessas dershanes, os alunos estudavam o Alcorão e os trabalhos de Nursi e estabeleciam relações próximas entre si. Essas dershanes serviam como espaços para encontros e discussões sobre tópicos filosóficos, sociais e religiosos. Elas se tornaram o modelo para as repúblicas de estudantes e “faróis” que o Sr. Gülen, mais tarde, ajudou a estabelecer.

Apear de o Sr. Gülen não ter frequentado escolas secundárias patrocinadas pelo Estado, mas o sitema informa de ijaza (licenças para o ensino), ele completou sua educação secundária secular por meio de exames externos. Em 1959, ele também prestou e passou no exame estadual para tornar-se imam e foi apontado pelo Estado a uma posição prestigiada porque seu sucesso no exame demonstrou o profundo conhecimento requerido de imams.[11]

Erzurum, onde ele recebeu sua primeira educação, era também um importante centro para defesa da ideologia nacionalista turca. Ela estava tradicionalmente localizada em uma rota de caravanas da Anatólia para o Irã e tornou-se uma importante estação de trem na rota Ancara-Irã. Localizada na fronteira da Turquia e tendo muitos imigrantes do Cáucaso, a área exultava uma cultura que estava na linha de frente da proteção da fronteira turco-islâmica contra ataques do Oriente, tanto de ataques externos reais quanto de apoiadores de países orientais que viviam na Turquia. O Sr. Gülen, quando jovem, liderou a Associação Turca pela Luta Contra o Comunismo em Erzurum e, mais tarde, recrutou apoio ideológico contra a ameaça política do Islam iraniano.[12] Seus anos em Erzurum, portanto, foram cruciais na formação das profundas convicções do Sr. Gülen sobre o Islam e o nacionalismo. Durante toda sua vida, Gülen apreciou e pregou a identidade turca.

Quando jovem, Fethullah Gülen foi a outra cidade fronteiriça no oeste da Turquia, Edirne, node serviu como líder de uma mesquita por quatro anos, cumpriu suas obrigações militares e, então, passou mais um ano em outra cidade da região. Em Edirne e, um ano depois, em Kirklareli, ele se tornou muito influente entre a juventude educada e entre as pessoas comuns. Ele organizou suas próprias palestras noturnas e discursou séries em que enfatizou a moralidade na vida privada e pública. Em 1966, o Diretório de Assuntos Religiosos turco, um órgão estatal criado nos primeiros anos da República para administrar os assuntos religiosos islâmicos, nomeou o Sr. Gülen para uma kestanepazari[13]em Izmir, a terceira maior cidade na Turquia, onde ele deveria ensinar ciências islâmicas e seria responsável por uma mesquita, por um corpo de estudantes e uma pensão estudantil e por pregar na região do Egeu. Ele vivia uma vida ascética e por cinco anos viveu em uma pequena choupana e não aceitou nenhum pagamento por seus serviços. Foi durante aqueles anos que as ideias do Sr. Gülen sobre educação e serviço à comunidade começaram a se desenvolver. A partir de 1969, ele marcava reuniões em cafeterias e palestrava em todas as províncias e aldeias da região do Egeu.

Estabelecendo os Primeiros Projetos Educacionais

O Sr. Gülen, junto com administradores das instituições Kestanepazari e com o apoio de empresários locais, também organizava acampamentos de verão para alunos do ensino fundamental e médio, assim como para estudantes universitários. Esses acampamentos ensinavam cursos de educação secular em áreas como história e biologia, mas também proviam discussões religiosas em questões como o papel do Islam nos debates públicos. O Sr. Gülen, com frequência, evocava a vida de Muhammad e dos períodos clássicos do Império Otomano como bons exemplos de maneiras em que a fidelidade aos preceitos do Islam promovia grandeza. Ele argumentava que, se a Turquia quisesse, mais uma vez, se uma grande nação, seria necessário que as pessoas vivessem uma vida islâmica leal e reconhecessem Deus em suas instituições públicas.[14] Dado que as escolas estatais não ensinavam Islam, o Sr. Gülen temia que os jovens não estavam aprendendo os princípios do Islam. Os acampamentos de verão eram uma forma de ensinar crianças em idade escolar sobre sua fé, juntamente com matérias seculares.

Além dos acampamentos de verão, a partir dos anos 1970, os ouvintes do Sr. Gülen começaram a formar uma nova cemaat em torno dos ensinamentos dele, semelhante à cemaat inspirada por Nursi que o Sr. Gülen frequentara anteriormente. Contudo, o que atraia as pessoas à mensagem do Sr. Gülen era seus sermões públicos em frente de milhares de ouvintes e palestras públicas que eram gravadas e vendidas em todo o país. Seus ouvintes eram principalmente compostos por empresários de baixa-média renda, com um pequeno número de empresários ricos, e estudantes universitários.[15] Ele atraia pessoas que apoiavam suas ideias, não apenas comparecendo às palestras dele, mas também com apoio financeiro e contribuições com mão-de-obra. Em uma modificação das dershanes do Movimento Nur, o Sr. Gülen ajudava estudantes, seus pais e doadores a estabelecer “casas de luz” onde a educação islâmica era estudada com base nos escritos de Nursi e seus próprios ensinamentos. Essas “casas de luz” tornaram-se uma fonte para milhares de educadores que, mais tarde, formariam o corpo docente das escolas estabelecidas pelas filosofias educacionais do Sr. Gülen. É nesse estágio da carreira do Sr.Gülen que um grupo de pessoas, com número aproximado de cem indivíduos, começou a se tornar visível como um grupo de serviço social, ou seja, um grupo que se reuniu em torno do entendimento dele de serviço à comunidade.[16]

Ciente de como a juventude na Turquia estava sendo atraída para ideologias extremistas e radicais, incluindo o comunismo e materialismo ateísta, como pregador, o Sr. Gülen tentou educar os jovens sobre os valores morais tradicionais e atraí-los para longe daquilo que ele via como ideias destrutivas e degradantes. Essa era uma época em que Erbakan, uma figura importante do partido governante, Partido da Justiça (PJ), argumentava que o Islam era uma alternativa ao socialismo e promovia um papel maior para o Islam na política global. Contra esse pano de fundo político, Fethullah Gülen também promovia ideais islâmicos como antídoto ao marxismo, leninismo e maoísmo radical que atraía tantos jovens na região. Com frequência, ele usava seu próprio dinheiro para comprar e distribuir materiais que opunham o ateísmo e comunismo militante. Ele via a erosão dos valores morais entre os jovens como causa para crimes e conflito social e estava resolvido a fazer tudo que podia para influenciar os jovens ao que ele via como uma direção mais saudável e produtiva.

Em 1970, como resultado de um golpe militar, vários muçulmanos proeminentes na região, que haviam apoiado atividades religiosas e palestras para os jovens da região, foram detidos, o Sr. Gülen estava entre eles. Ele ficou preso por seis meses sem acusação. Ele foi solto com a condição de que não faria mais palestras públicas. Após sua soltura, o Sr. Gülen deixou seu posto oficial em Izmir, mas manteve seu status de pregador autorizado pelo Estado. Ele continuou a incitar doadores e pais a estabelecerem centros de estudos e pensões estudantis em toda a região do Egeu. Em Izmir, ele organizou acampamentos de verão e repúblicas onde estudantes universitários poderiam morar, estudar e desenvolver um sentimento de identidade como muçulmanos turcos. Nessas repúblicas, um peque grupo de estudantes do mesmo sexo viviam juntos, ajudavam uns aos outros a estudar, liam o Alcorão e os escritos de Nursi e do Sr. Gülen, oravam juntos e desenvolviam um forte sentimento de solidariedade. Os Alunos aprendiam e inculcavam valores islâmicos de sacrifício próprio e responsabilidade social. As repúblicas serviam como abrigos contra o uso de bebidas alcoólicas e drogas, relações sexuais pré-nupciais e envolvimento em movimentos radicais, comunistas ou ultranacionalistas. Muitos pais conservadores e religiosos encorajavam seus filhos a viverem nas repúblicas enquanto frequentavam a universidade nas grandes cidades da Turquia.

Izmir era uma cidade onde o Islam político nunca se estabeleceu e onde os empresários e a classe média profissional passaram a se ressentir das restrições da burocracia estatal. Em vez disso, esse grupo defendia políticas favoráveis ao mercado e ideias pró-Ocidente. O comprometimento do Sr. Gülen como livre mercado e seu encorajamento para que empresários desenvolvessem seus negócios, tornassem-nos globais e competitivos e, depois, contribuíssem com uma parte de sua riqueza para apoiar os projetos de serviço social apelava a esse espírito empreendedor. O financiamento para as repúblicas e escolas privadas vinha de empresários locais que apoiavam a missão do Sr. Gülen de educar os jovens tanto em assuntos seculares quanto em princípios morais. Foi em Izmir que um poderoso movimento transnacional começou a se cristalizar em torno do Sr. Gülen e, hoje, inclui milhares de redes soltas de indivíduos que compartilham a mesma opinião.

Entre 1972 e 1975, o Sr. Gülen ocupou posições como pregador em várias cidades nas regiões do Egeu e de Marmara, onde ele continuou a pregar e a promover ideias sobre educação e serviço à comunidade. Naquela época, oportunidades educacionais eram raras para turcos ordinários e alguns cidadãos pensavam que a maior parte da educação estava infiltrada por elementos políticos radicais, tanto de esquerda quanto de direita. Pais cujos filhos passaram nas provas de admissão requeridas para o ensino médio e universidade se viam presos no dilema de querer seus filhos educados, mas temer a atmosfera altamente politizada das escolas. Para lidar com esse dilema, o Sr. Gülen encorajou donos de pequenos negócios a estabelecerem pensões estudantis onde os alunos poderiam buscar educação em uma atmosfera que ele esperava estar distante de um ambiente politizado. Para apoiar essas casas e oportunidades de educação, indivíduos locais que compartilhavam a ética de serviço do Sr. Gülen estabeleceram “bolsas-de-estudos”, contas que apoiavam as atividades. Mais uma vez, foram as pessoas locais que viram a necessidade de educação de qualidade e foram influenciadas pela ética de serviço do Sr. Gülen e que se apresentaram com os recursos para pôr as ideias dele em prática.

Com o tempo, os estudantes que viveram nas pensões tornaram-se grandes defensores das ideias de serviço dos Sr. Gülen e retornaram às suas aldeias e cidades para contar sobre suas experiências e oportunidades valiosas. Armados com uma boa educação, eles se tornaram comerciantes, empresários e profissionais em suas comunidades e começaram a se reunir para prover o apoio financeiro para manter as pensões estudantis e consequentemente outros projetos de serviço em andamento. Ao mesmo tempo, os discursos e palestras do Sr. Gülen eram gravadas em fitas cassete e distribuídos para todas as comunidades na Turquia. Ele foi o primeiro pregador cujas palestras foram disponibilizadas em fitas e vídeos cassete para o público geral na Turquia. Por meio das atividades de seus alunos nas comunidades e com os novos canais tecnológicos de comunicação, o discurso de serviço do Sr. Gülen começou a se espalhar na Turquia.

Em 1974, o Sr. Gülen foi enviado a Manisa, onde ele começou o primeiro curso pré-vestibular em uma tentativa de preparar crianças turcas ordinárias para a educação superior. Até aquele momento, crianças de famílias ricas eram, quase exclusivamente, as únicas que conseguiam entrar para universidade. Com a oferta de cursos preparatórios de ponta, uma amostra mais ampla de crianças da classe trabalhadora e da classe média foram preparadas para fazer os exames mandatórios para entrar para universidade e, uma vez lá, serem bem-sucedidas.

O Estabelecimento das Escolas Inspiradas por Gülen

Com as políticas neoliberais de Ozal no início dos anos 1980 e com maiores oportunidades para o estabelecimento de escolas privadas, em 1982, as duas primeiras escolas de ensino-médio inspiradas por Gülen foram abertas, uma em Izmir e a outra em Istambul. Essas foram seguidas, no curso das duas décadas seguintes, por centenas de escolas do tipo em toda a Turquia e, eventualmente, para as repúblicas turcas da antiga União Soviética, depois, para outros Estados sucessores da União Soviética, para os Balcãs, África do Sul e, finalmente, para o Ocidente. No Fórum Econômico Mundial de 2000, em Davos, o Primeiro-Ministro Ecevit reconheceu, em seu discurso, a importância das escolas inspiradas por Gülen em todo o mundo e como essas escolas contribuem para as culturas e bem-estar da Turquia e outros países.[17]

O Sr. Gülen encorajava seus ouvintes a investir em escolas de ensino-médio privadas, seculares e de elite onde ele esperava combinar a moral islâmica com o conhecimento secular. Essas escolas são baseadas em um currículo secular aprovado pelo Estado e usam o inglês como língua de instrução. O único Islam que é formalmente ensinado nas escolas é aquele na uma hora permitida pelo Estado para instrução religiosa em religiões comparativas com o livro selecionado pelo Estado. Todas as escolas, assim como as outras instituições inspiradas por Gülen são unidades independentes administradas e financiadas por grupos locais. Contudo, os funcionários dessas escolas são unidos no que Agai[18] chama de uma “rede educacional de virtude”, com base no fato de que figuras importantes foram socializadas na cemaat, participaram na vida da cemaat e estão conectados umas às outras por meio de elos interpessoais próximos criados na cemaat. Muitos dos diretores e professores das escolas, tanto na Turquia quanto fora dela, vêm de educadores com envolvimento substancial na cemaat. A cemaat garante que pessoas qualificadas e motivadas se movem dentro da rede para os lugares onde elas são necessárias para servir.

Nas escolas, no entanto, há também professores que não são participantes do Movimento Gülen e talvez nunca tenham ouvido falar de Fethullah Gülen. Contudo, sem o comprometimento dos professores inspirados por Gülen, que veem seu trabalho como um serviço religioso, essas escolas de qualidade não existiriam. Muitos pais enviam seus filhos a essas escolas porque as reconhecem como a melhor educação possível para seus filhos. Como Agai observa, o Sr. Gülen conseguiu fortalecer a influência de sua cemaat por abri-la e fazê-la parte de um conglomerado mais amplo de redes educacionais. Enquanto as instituições dependem da cemaat para ter professores e investidores motivados, o Sr. Gülen intencionou suas ideias a uma audiência mais ampla interessadas em educação e modernização.

 Em 1977, com 36 anos de idade, Fethullah Gülen era amplamente reconhecido como um dos pregadores mais influentes da Turquia. Naquele ano, na ocasião em o que o primeiro-ministro e outros dignitários do Estado compareceram à oração de sexta-feira na Mesquita Azul em Istambul, ele foi convidado a pregar.

Meios de Comunicação Inspirados por Gülen

O Sr. Gülen também encorajou seus seguidores a entrarem no mercado editorial como forma de espalhar a importância da educação e do serviço social. Mais uma vez, a liberalização do ambiente político e a oportunidade para uma mídia jornalística independente e sem censura introduzidas pelo Presidente Ozal proveram o contexto em que editoras privadas se tornaram possíveis na Turquia. Em 1979, um grupo de professores inspirados pelas ideias de educação do Sr. Gülen estabeleceu a Fundação dos Professores para apoiar a educação. Essa fundação começou a publicar sua própria revista mensal, Sizinti, que se tornou a revista mensal mais vendida na Turquia.[19] Sua missão era relacionar ciência e religião, para mostrar que elas não são incompatíveis e que o conhecimento de ambas é essencial para uma educação de sucesso. Cada uma da edições da revista tem um editorial escrito pelo Sr. Gülen. Além disso, centenas dos seus sermões foram gravados em áudio e vídeo e uma série de sermões em tópicos chave foram publicados na forma de mais de 60 livros, muitos deles tornaram-se os mais vendidos na Turquia. Muitos desses livros estão disponíveis em traduções nas maiores línguas mundiais, impressos e eletronicamente, em inúmeros websites.

Da mesma maneira, o Sr. Gülen encorajava constantemente o uso de avanços tecnológicos como forma de educação das massas e dos jovens. Em 1982, sob a presidência do Sr. Ozal, a constituição introduziu reformas sociais que permitia maior organização social e religiosa. Essas reformas abriram as portas para uma expressão religiosa previamente restrita e levou à revitalização religiosa em todo o país. Como resultado, nos anos 1980, muitos dos discursos do Sr. Gülen foram gravados e distribuídos em fitas de vídeo, assim, espalhando seu discurso de serviço a audiências ainda mais amplas em toda Turquia. No final dos anos 1980, sue sermões atraiam enormes multidões de dezenas de milhares, números sem precedentes na Turquia.[20] Esses sermões também eram filmados e disseminados amplamente pelo país.

Participantes do Movimento Gülen também estabeleceram uma estação nacional de televisão (Samanyolu Televizyionu – STV), uma importante agência de notícias (Cihan Haber Ajansi – CHA), o Zaman, um jornal diário independente que tem a maior circulação diária na Turquia e é impresso em dez línguas do mundo em em línguas turcas locais em todo o mundo turco, várias revistas importantes e a editoda The Light, Inc.

Sucesso é o melhor conselheiro da oportunidade e, nesse caso, conforme a notícia sobre tudo que o Sr. Gülen e as pessoas inspiradas por suas mensagens estavam alcançando se espalhou, ele foi convidado a falar em toda a Turquia. Grupos locais também estavam ansioso a abrir escolas inspiradas por Gülen em suas áreas. Assim como o ensino de artes e humanidade, as escolas inspiradas por Gülen eram extremamente bem-sucedidas em preparar os alunos para exames pré-vestibulares e para competições de ciência nacionais e internacionais em matemática, química, biologia e ciências da computação. O sucesso das escolas privadas estabelecidas pelo movimento foi, para muitos, a confirmação daquilo que o Sr. Gülen sempre argumentara em seus discursos e textos, ou seja, que o indivíduo pode se um muçulmano devoto e, contudo, moderno ao mesmo tempo.

O Sr. Gülen como Para-Raios de Críticos

Dada a história moderna da Turquia como república secular, desde do estabelecimento da República da Turquia por Mustafa Kemal Atatürk 1923, e o estabelecimento do secularismo como um dos seis pilares dos princípios kemalistas, é quase inevitável que a visibilidade e crescimento do movimento chamaria a atenção e causaria medo na arena política secular.

A partir de 1971, com a detenção e seis meses de prisão do Sr. Gülen, ele foi periodicamente acusado por autoridades estatais de ameaçar o laicismo do regime oficial. No fim dos anos 1990, controvérsia sobre ele irrompeu em torno dele quando um canal de televisão turco privado transmitiu vídeos em que ele parecia pregar pela luta contra a república secular e pela necessidade de derrubá-la e substituí-la por um Estado islâmico. Alguns de seus apoiadores argumentaram que esses vídeos foram feitos a parti de uma combinação de gravações de imagens e áudios sofisticadamente manipulados para criticá-lo e ataca-lo.[21] Em 2000, o procurador do Estado, Yuksel, protocolou a ordem de prisão do Sr. Gülen com a acusação de que ele e seus simpatizantes organizaram um grupo para mudar o governo secular e transformá-lo em um Estado teocrático. Após anos de audiências judiciais e recursos, em maio de 2006, o caso contra o Sr. Gülen foi finalmente rejeitado pela Supremo Tribunal Criminal em Ancara.

Em 1999, o Sr. Gülen mudou-se para os Estados Unidos para buscar tratamento médico para suas muitas doenças, incluindo problemas de coração e diabetes. Mesmo nos Estados Unidos, ele não está livre de controvérsia. Em novembro de 2006, o Sr. Gülen protocolou um pedido para residência permanente (conhecida como “green card”), o que lhe permitiria viver e trabalhar legalmente no país. O Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA (USCIS) recusou seu pedido, argumentando que a justificativa que ele havia apresentado, ou seja, seu status como “um acadêmico extremamente talentoso” era insuficiente e infundada. O recurso do Sr. Gülen foi ouvido em um tribunal federal no Distrito Leste da Pensilvânia (onde ele reside) e aceito pelo tribunal, que determinou que a recusa do USCIS foi inapropriada. Em outubro de 2008, a petição do Sr. Gülen para residência permanente foi finalmente outorgada pelo governo dos Estados Unidos.

Como a história de vida acima demonstra, o Sr. Gülen foi uma inspiração para milhões de turcos no mundo todo que repercutem suas ideias, estão comprometidos em ser parte dos sohbets (círculos locais) de pessoas que conversam sobre os temas dos sermões e escritos dele e doam seu tempo e dinheiro para apoiar os projetos de serviço social que ele inspira. Por outro lado, há turcos que estão convencidos de que o Sr. Gülen tem o objetivo de estabelecer um Estado teocrático na Turquia, levando a Turquia a um retrocesso à proposta de modernização, fazendo lavagem cerebral nos jovens para que eles sigam suas ideias e estabelecendo uma sociedade secreta devotada ao Sr. Gülen e à sua agenda. Quais são as ideias, crenças e visão de mundo do Sr. Gülen que inspiram alguns e levam outros a temerem pelo futuro da Turquia?

As Principais Ideias Promovidas pelo Sr. Gülen

Construindo Pontes Entre o Islam e o Ocidente

Um dos maiores focos dos ensinamentos do Sr. Gülen é a necessidade de criação de pontes entre o mundo muçulmano e o Ocidente, junto com a importância de sintetizar os avanços científicos e tecnológicos na sociedade muçulmana contemporânea. Ele acredita que assim como os turcos tiveram um papel religioso e cultual central sob os otomanos por séculos, a Turquia está pronta para liderar o mundo muçulmano nos séculos XX e XXI com ênfase em tolerância, diálogo, ciência e educação. Enquanto o Sr. Gülen acredita que há apenas um Islam autêntico baseado no Alcorão e nas tradições do Profeta, ele reconhece as diferentes interpretações históricas, culturais e sociais do Islam no mundo moderno.[22]

O Sr. Gülen defende uma noção progressista do Islam na qual muçulmanos e nações muçulmanas podem se engajar no mundo com o melhor da ciência, educação, filosofia, ciências sócias e tecnologia. Ele argumenta que desde o advento seu advento no século VI, o Islam interage com condições históricas e culturais distintas e que os muçulmanos ficaram para trás quando fracassaram em competir no mundo cada vez mais global no final do século IXX.

Para reconquistar um papel respeitável no mundo moderno, o Sr. Gülen frequentemente relembra seus seguidores do legado otomano na Turquia contemporânea. Ele não defende o retorno do califado, mas foca nos principais valores culturais e práticas dos otomanos: (1) o espírito de diálogo; (2) o fato de que o Estado Otomano era multilinguístico, multiétnico e multireligioso; (3) respeito pleas mulheres; e (4) a aproximação intelectual e cultural entre a sociedade otomana e o Ocidente iniciada no século IXX.[23] O Sr. Gülen defende o uso do modelo otomano como uma base para o retorno do mundo muçulmano ao centro da civilização mundial e para criação de laços produtivos com o Ocidente. Devido a sua localização geográfica estratégica entre o oriente e o ocidente e seu sistema de governo democrático, ele vê a Turquia como o líder no mundo muçulmano para conectar o Oriente e o Ocidente.

O Sr. Gülen acredita que o mundo muçulmano contemporâneo enfrenta vários desafios sérios, um deles é a ausência de uma mentalidade verdadeiramente científica como evidenciado por muitos países muçulmanos, e o segundo é a ausência de verdadeiro diálogo entre o mundo muçulmano e o Ocidente.[24] Ele admite que o mundo muçulmano foi dominado e subjugado pelo mundo ocidental na maior parte da história moderna. Contudo, ele sente que é hora de o mundo muçulmano demonstrar o lado positivo do Islam ao Ocidente.

Uma maneira pela qual muçulmanos começam a mostrar o lado positivo do Islam é o engajamento em globalização e o engajamento e interação com povos de todo o mundo. Ele defende a formação de uma “geração áurea”[25], ou seja, jovens altamente educados e responsáveis que pensam internacionalmente. Essa nova geração é amplamente encorajada a viajar, aprender várias línguas, estudar ciências físicas e sociais em muitos cenários educacionais diferentes e a engajar-se ativamente no diálogo inter-religioso onde quer que estejam.

Educação

O maior problema do mundo hoje, segundo o Sr. Gülen, é a falta de conhecimento, o que inclui a produção e controle do conhecimento, assim com a aquisição do conhecimento existente. Produzir, manter e disseminar o conhecimento só é possível por meio de educação de qualidade, não por meio da política ou da força. A educação, para o Sr. Gülen, é a resposta para tornar-se um indivíduo produtivo e contribuinte em qualquer sociedade. Nenhum indivíduo ou sociedade, dele diz, pode alcançar seu total potencial sem educação. Ele vê a educação como um meio pelo qual as pessoas se tornam os verdadeiros seres que Deus as criou para serem; portanto, ser educado é a tarefa mais importante da vida. Ele diz:

A principal obrigação e propósito da vida humana é buscar entendimento. O esforço para fazê-lo, conhecido como educação, é um processo de aperfeiçoamento pelo qual nos tornamos merecedores, nas dimensões física, intelectual e física do nosso ser, da posição designada a nós como padrão perfeito da criação.[26]

Ele vê três formas de educação (i.e., ciência, humanidades e religião) que melhoram e complementam umas às outras e precisam operar em conjunto para formar um ser humano completo e pleno (Aslandogan e Cetin 2006). O Sr. Gülen defende a inclusão de valores éticos junto com um treinamento sólido nas ciências seculares.

Ele vê a educação como um requisito para modernização social, econômica e política e defende que indivíduos respeitarão a lei democrática e os direitos humanos apenas se receberem uma educação sólida. Justiça social e paz, ele argumenta, são conquistadas por pessoas intelectualmente iluminadas, com valores morais fortes e um sentimento de altruísmo. O Sr. Gülen e aqueles inspirados por suas palavras esperam educar uma geração treinada com conhecimento moderno assim como com moral islâmica. Essa filosofia é a base do sistema educacional em todas as escolas de nível primário, secundário e universitário inspiradas pelos ideais do Sr. Gülen.

Enquanto defende o engajamento educacional, científico e inter-religioso globalmente, o Sr. Gülen insiste que isso não significa aceitar a ocidentalização em sua inteireza. Ele argumenta que apesar de a civilização ocidental ter dominado o mundo nos últimos séculos, e ter liderado a ciência e tecnologia, a visão de mundo do Ocidente é materialista e carece do foco em outras dimensões do ser humano, especialmente a dimensão espiritual.[27] Em especial, desde o Iluminismo, muitas pessoas separaram a religião dos objetivos da ciência e consideram a religião antiquada e uma ameaça à pesquisa científica. O Sr. Gülen insiste que religião e ciência caminham juntas e que a religião pode e deve ter um papel nos domínios ético, intelectual e social.

Na opinião do Sr. Gülen, ciência e religião não são apenas compatíveis, mas complementares. Ele enxerga uma visão de mundo baseada na religião que provê uma narrativa abrangente e sólida que pode apoiar e dar significado ao aprendizado secular. Nas palavras dele, o melhor conhecimento capacita os pupilos a conectar acontecimentos do mundo externo às suas experiências internas.[28] Ele também rejeita a religião como fé cega e critica aqueles que fracassam em utilizar a razão para explorar e analisar o universo observável. Portanto, ele vê a necessidade de reconciliação entre religião e razão, em vez de menosprezar qualquer uma delas.

As críticas do Sr. Gülen sobre as madraças tradicionais (escolas religiosas) e takyas (instituições educacionais tradicionais islâmicas) é que elas não atendem às demandas da vida moderna, pois carecem de métodos e ferramentas para preparar os alunos para fazerem contribuições positivas para o mundo moderno por causa de sua falha em integrar ciência e tecnologia em seu currículo tradicional. Ele também critica as escolas seculares por falharem em transmitir valores espirituais e éticos aos alunos, mesmo que estejam bem equipadas para ensinar ciência e tecnologia. Para resolver isso, o Sr. Gülen propõe um sistema educacional que integra conhecimento científico como valores éticos.[29]

O Sr. Gülen vê a educação científica e a educação islâmica como compatíveis e complementares. Apesar de ele ter sido educado em instituições tradicionais islâmicas, ele estimula seus ouvintes a abrirem escolas em vez de mesquitas. Ele defende a educação da geração jovem sobre o conhecimento islâmico por meio de publicações informais, sermões e na família em vez de por meio de um currículo formal nas escolas.[30]

O Sr. Gülen insiste que as escolas inspiradas pelo movimento evitem a politização. Apesar de ser abordado por vários líderes de partidos políticos para endosso, ele sempre manteve uma posição não partidária e fortemente encoraja seus seguidores a permanecerem fora do envolvimento direto na política. Ele argumenta que a Turquia já sofre com várias formas de divisão e que a educação deveria permanecer como uma ilha de unidade e não ser manchada por ambições políticas.[31]

Financiando os Projetos de Serviço Social e o Espírito de Doação e Serviço

Alcançar os projetos educacionais que o Sr. Gülen visionava requeira requeria recursos humanos e financeiros. Professores e diretores que fossem dedicados e comprometidos com a qualidade de educação e que estivessem dispostos a fazer sacrifícios para melhorar a educação de seus alunos eram necessários. Pais deveriam estar dispostos a trabalhar com os professores e administradores das escolas para os objetivos educacionais em comum. E, para alcançar tais objetivos, doações filantrópicas por meio do estabelecimento de fundos de caridade eram necessárias. O Sr. Gülen, portanto, nos primeiros dias do movimento, começou a falar às pessoas de todos os estratos sociais na Turquia. Ele visitou grupos onde quer que pudesse encontra-los, em cafeterias, mesquitas, residências em vilarejos, pequenas e grandes cidades em toda Turquia. Independentemente de a quem ele se dirigia, sua mensagem era a mesma: educação sólida em escolas de qualidade e, para alcança-las, a necessidade de serviço altruísta e contribuições financeiras.[32]

Ele constantemente encorajava a elite social e os líderes comunitários, industriais abastados e pequenos empresários a apoiarem a educação de qualidade. Com doações desses indivíduos, fundos educacionais foram estabelecidos para apoiar centenas de escolas na Turquia e no exterior.

Em seus sermões e apelos, ele se voltava a ideias e valores comuns em muitas tradições religiosas: dever, moral, obrigação, contribuições desinteressadas e serviço altruísta.[33] Como Sevindi mostra, Gülen genuinamente acreditava e encorajava a livre iniciativa.[34] Ele pregava que os crentes devem ser abastados e aumentar seus negócios tanto quanto possível, especialmente globalmente, o que ele vê como o futuro econômico do mundo. Uma porção da riqueza acumulada, então, deveria ser usada para apoiar os muitos projetos educacionais que trabalham contra ignorância, pobreza e imoralidade. O Sr. Gülen argumentava continuamente que um livre mercado forte é necessário para produção de riqueza econômica, que, em contrapartida, pode apoiar o sistema educacional moderno que, eventualmente, empoderará os muçulmanos e o Estado turco.[35]

Na década de 1980, sob a liderança do Presidente Ozal, a liberalização econômica da Turquia viu crescer uma nova classe empreendedora que acumulou riqueza com investimentos em empresas e especulação de capital tanto na Turquia quanto internacionalmente. Muitos desses empresários foram atraídos pelas ideias do Sr. Gülen de empreendedorismo e acumulação de riqueza, juntamente com uma responsabilidade social e religiosa para apoiar projetos de serviços sociais, especialmente em termos de qualidade de educação, projetos que contribuiriam para a melhoria da educação entre a juventude turca. E junto com a educação em matérias seculares, nas escolas inspiradas por Gülen, viria a educação moral e o desenvolvimento de uma forte identidade turca/muçulmana.

O Sr. Güen encorajava as novas classes de empresários a, inicialmente, patrocinar repúblicas onde os estudantes poderiam morar e estudar juntos sob a tutela de professores dedicados. O segundo passo que ele promoveu foi o financiamento de cursos pré-vestibulares para preparar os alunos para o exame vestibular universitário. Finalmente, ele encorajou o financiamento de escolas seculares privadas estabelecidas dentro da estrutura educacional do Estado.

O Sr. Gülen pregava que todos têm um papel na criação de escolas de ponta na Turquia. Aqueles que eram capazes e motivados a fazê-lo, foram convidados a serem administradores e professores nas escolas. Aqueles que são donos de empresas ou engajados em ocupações profissionais deveriam aumentar sua riqueza tanto quanto possível para apoiar financeiramente os projetos educacionais. Crentes religiosos na Turquia e no exterior devem ser ricos, não apenas para seu próprio benefício, mas para apoiar projetos sociais vantajosos.[36] Ele incentivou empresários a combinarem seus recursos e energia em fundos de caridade nos quais ninguém se beneficia dos ganhos da instituição exceto os próprios alunos. Para muitos empresários, construir uma escola é o equivalente moderno de construir uma mesquita.[37]

Enquanto ele próprio continuou pobre, seu ascetismo e objetivos altruístas motivaram professores, pais e patrocinadores a contribuir para o bem comum de qualquer maneira que pudessem. Exceto por motivar as pessoas a doarem dinheiro, o Sr. Gülen manteve-se distante da administração financeira de todas as instituições ligadas ao movimento. Em vez disso, ele encorajou os patrocinadores dessas instituições a supervisionarem ativamente a utilização de seu dinheiro. Isso construiu uma grande confiança na honestidade e integridade do Sr. Gülen.[38]

 O Sr. Gülen refere-se frequentemente ao que Ali, o quarto califa após Muhammad, disse: “todos os seres humanos são irmãos e irmãs. Muçulmanos são irmãos e irmãs na religião, enquanto não muçulmanos são irmãos e irmãs na humanidade... Os seres humanos são a mais honorável das criaturas. Aqueles que querem aumentar sua honra devem servir essa criatura honorável.”[39] E, para o Sr. Gülen, o suprimento de uma boa educação por meio de serviços altruístas e fundos de caridade é um dos modos mais honrados de se mostrar respeito e reverência por seus semelhantes seres humanos. O trabalho torna-se um ato de serviço a Deus, mesmo que apenas uma porção dos ganhos do indivíduo é doado à causa de serviços sociais. Trabalho educacional e o apoio à educação são particularmente dotados de valores islâmicos elevados.

Conforme mostramos no Capítulo 5 “A Cultura Turco-Islâmica de Doação”, as ideias do Sr. Gülen de serviço reviveram as dinâmicas filantrópicas, altruísmo e benevolência que estão profundamente incrustadas na cultura turca e preencheram o vazio deixado pelas políticas governamentais. Ele transformou as mentes das pessoas ao trazer um novo entendimento sobre religião, ciência e secularismo e serviços sociais e educacionais. Ele afirmava que a Turquia, assim como toda humanidade, precisava de indivíduos mais altruístas como corações magnânimos e mentes abertas que respeitam o pensamento livre, abertos à ciência e pesquisa científica, e que percebem a harmonia entre as Leis Divinas, o universo e a vida.

Diálogo Inter-religioso e Intercultural

O Sr. Gülen, em sua ênfase sobre o diálogo inter-religioso e intercultural, com frequência, refere-se à relação inter-religiosa harmoniosa que existia no Império Otomano. O império era composto não apenas por muçulmanos, mas por muitos cristãos e judeus, assim como por alguns zoroastristas. Até a emergência dos estados nacionais modernos, esses grupos viviam juntos pacifica e produtivamente durante todo o período otomano. Essa coexistência pacífica era promovida por muitos dos mestres sufistas que desposavam as ideias de tolerância inter-religiosa.[40] O Sr. Gülen estudou muitos dos mestres sufistas e foi, sem dúvida, influenciado por eles em sua insistência sobre a importância do diálogo entre essas comunidades religiosas.

Conceitos de compaixão e amor são conceitos centrais nos ensinamentos do Sr. Gülen. Ele, continuamente, defende tolerância e perdão como valores islâmicos centrais que são enraizados em humildade. Ele ensina que as pessoas que acreditam em sua própria superioridade nunca se engajarão em verdadeiro diálogo. Ao contrário, é mais provável que aquele é humilde dialogará com os outros de maneira aberta e significativa. O Sr. Gülen demonstrou sua própria humildade quando se encontrou com o Papa João Paulo II em fevereiro de 1998. Após o encontro, ele foi criticado por um grupo de jovens islamistas que argumentaram que ele não deveria ter se humilhado, indo ao Vaticano e encontrado o Papa. O Sr. Gülen respondeu, dizendo que humildade é um atributo dos muçulmanos e que o diálogo com pessoas de outras tradições religiosas é uma parte integral do Islam. Ele reiterou que a humildade é essencial para o verdadeiro diálogo e que as pessoas não deveriam pensar em sua própria superioridade, mas deveriam ser humildes ante aqueles de outras tradições religiosas.[41] De certa forma, ele percebe todos os humanos como servos de Deus independentemente de suas origens étnicas, nacionais ou religiosas. Ele cita o Profeta quando diz que não há superioridade de árabes sobre não árabes, nem de não árabes sobre árabes. Em vez disso, a religião do Islam dá o mesmo valor a todos os humanos e os chama de servos do Mais Compassivo.

O Sr. Gülen também pede que os muçulmanos não façam do Islam uma ideologia que tenha o perigo de leva-lo à arena política, uma ação que previne os muçulmanos de participarem do diálogo com outras religiões. Ideologias, ele diz, são divisoras em vez de unificadoras. Ele vê o Islam como uma religião e não deveria ser um meio para partidarismo, ódio nacional ou sentimentos de inimizade entre pessoas.[42] Ele também exemplificou suas convicções ao estabelecer boas relações com líderes de minorias na Turquia. No fim da década de 1980, ele iniciou o diálogo com o Patriarca Grego Ortodoxo Bartholomew para tentar melhorar a situação dos gregos na Turquia, que eram criticados com frequência pelos políticos turcos.[43] O Sr. Gülen, frente a muita oposição, também trabalhou para estabelecer uma escola em Yerevan, capital da Armênia.[44]

As ações do Sr. Gülen acima demonstram sua insistência em diálogo intercivilização e avanços educacionais, junto com o diálogo inter-religioso. Nas palavras dele: “Nossas atividades correntes são para o bem de toda humanidade. Elas não deveriam ser consideradas limitadas ao nosso próprio país, a Turquia”.[45] Seguindo esse conselho do Sr. Gülen, empresários e educadores turcos expandiram as escolas e hospitais muito além das fronteiras da Turquia.

O Sr. Gülen reitera frequentemente o fato de que o diálogo inter-religioso não é um luxo, mas tornou-se uma necessidade no mundo global de hoje. Ele reconhece que as pluralidades do mundo contemporâneo continuarão a existir e apresentam um desafio cada vez maior conforme o mundo se torna uma aldeia global. Em suas palavras:

Diferentes crenças, raças, costumes e tradições continuarão a coabitar nessa aldeia. Cada indivíduo é como um reino único em si mesmo; portanto o desejo para que toda humanidade seja semelhante uns dos outros nada mais é do que desejar o impossível. Por essa razão, a paz dessa aldeia (global) está no respeito a essas diferenças, em considerar essas diferenças parte da nossa natureza e em garantir que as pessoas apreciem essas diferenças. Caso contrário, é inevitável que o mundo devore a si mesmo em uma rede de conflitos, disputas, lutas e nas mais sangrentas batalhas, portanto, preparando o caminho para seu próprio fim.[46]

No mesmo tratado, ele diz:

Islam, Cristianismo e Judaísmo, todos vêm da mesma raiz, têm a mesma essência e são nutridas pela mesma fonte. Apesar de elas terem vivido como religiões rivais por anos, os pontos em comum entre elas e sua responsabilidade compartilhada de construir um mundo feliz para todas as criaturas de Deus faz do diálogo entre elas algo necessário. Esse diálogo agora é expandido para incluir religiões da Ásia e de outras áreas.[47]

Desde que se aposentou da pregação e do ensino formal, muito dos esforços do Sr. Gülen concentra-se em estabelecer diálogo entre as várias culturas, religiões e grupos étnicos da Turquia. Ele faz isso por meio de seus encontros intermitentes como pessoas de várias origens que vão visita-lo em sua casa na Pensilvânia, por meio de suas transmissões na Internet e com seus artigos inspirativos regulares no Zaman e muitos outros meios jornalísticos. Ele continua a ser chamado, com muito respeito e afeição, de Hocaefendi, presado professor, por seus ouvintes e leitores.

O Islam Não Promove Nem Tolera o Terrorismo

Em 12 de setembro de 2001, o Sr. Gülen pagou por uma página inteira no New York Times para expressar condenação aos ataques terroristas do dia anterior e para afirmar que o terrorismo é incompatível com os ensinamentos do Profeta e da religião do Islam. Mais uma vez, em 21 de setembro de 2001, ele expressou sua posição no Washington Post com as seguintes palavras:

Condenamos veementemente o ataque terrorista recente nos Estados Unidos da América, e sentimos a dor do povo americano de todo coração. O Islam abomina atos de terror. Uma religião que professa que “Ele que mata injustamente a um homem, mata toda a humanidade” não pode compactuar com o assassinato insensível de milhares de pessoas. Nossos pensamentos e orações vão para as vítimas e seus entes queridos.

Em um ensaio subsequente, ele foi ainda mais longe e declarou claramente que o Islam não aprova qualquer tipo de terrorismo e que o Islam não pode ser usado para se alcançar qualquer tipo de objetivo islâmico. Ele usou a frase que foi ouvida repetidamente por seus seguidores nos anos após o Onze de Setembro: “Nenhum terrorista pode ser muçulmano e nenhum muçulmano verdadeiro pode ser um terrorista”.

O Sr. Gülen também rogou aos Estados Unidos que não retaliasse com o tipo de força que feriria massas inocentes para punir algumas pessoas culpadas. Ele alertou que tais ações apenas fortaleceriam os terroristas, alimentando qualquer ressentimento existente e gerando mais terroristas e mais violência.[48]

O Sr. Gülen também critica líderes muçulmanos que usam o Islam para seus interesses e poder pessoais. Ele diz que alguns líderes religiosos e “muçulmanos imaturos” usam interpretações fundamentalistas do Islam para engajar pessoas em conflitos que servem aos próprios propósitos deles. No Islam, ele diz, assim como um objetivo deve ser legítimo, também o devem todos os meios para alcança-lo. Assim, uma pessoa não pode obter o Céu pelo assassinato de outra pessoa. Um indivíduo que aceita o Islam nunca tomará parte, conscientemente, do terrorismo.

O Sr. Gülen insiste que muitos jovens perderam sua espiritualidade que alguns líderes tomam vantagem disso, recrutando essa juventude descontente para atividades terrorista e explorando-as. Ele chega a dizer que esses líderes “as drogaram”, manipulando suas ideias e comprometimentos.[49] A principal forma de contrapor essas atividades, para o Sr. Gülen, é prover educação de qualidade que servirá como alternativa para potenciais jovens recrutas.

A educação é o mais direto e poderoso antídoto contra o terrorismo na estrutura do Sr. Gülen. Ele afirma que os princípios fundamentais da religião são totalmente contra os atos políticos e ideológicos e interpretações que são a base e motivam atos brutais de terrorismo. Esses princípios fundamentais devem ser ensinados aos muçulmanos e também a outras pessoas por meio do sistema educacional. Prover educação de qualidade aos jovens os desafiará a verem o terrorismo como destrutivo, imoral e como um ato contra a humanidade.[50]

A Relação entre Estado e Religião

Enquanto o Sr. Gülen não defende o estabelecimento de um sistema político islâmico e, continuamente, aconselha seus leitores a não se emaranharem com política, ele acredita firmemente que a religião não deve ser confinada à esfera privada do indivíduo, mas deve ser parte da vida pública. Ele defende a total separação entre religião e política nas sociedades muçulmanas contemporâneas. Na opinião dele, o domínio dos assuntos religiosos pelo Estado fere o Islam e, portanto, a religião deve ser livre do controle do Estado.

O Movimento Gülen foi a primeira comunidade islâmica na Turquia a aceitar abertamente a legitimidade do Estado secular enquanto pedia por liberdade religiosa sob este.[51] Em 1998, a Fundação de Jornalistas e Escritores, uma organização de diálogo intercultural sem fins lucrativos associada ao Movimento Gülen, iniciou um encontro com alguns dos teólogos e eruditos islâmicos mais respeitados da Turquia. A declaração que resultou do encontro indicou uma aceitação do Estado secular que se “posicionaria à mesma distância de todas as crenças e filosofias”.[52]

Sem dúvida, o Sr. Gülen tem fortes convicções sobre sua herança nacional e tem orgulho de sua identidade turca. Ele se refere constantemente às suas raízes turcas e à história otomana da Turquia e do mundo turco mais amplo. Sua noção de identidade é, portanto, formado pelo legado otomano-islâmico. Devido à sua característica nacionalista, a comunidade do Sr. Gülen desenvolveu sua própria orientação e diferenciou-se de outros grupos Nursi e islâmicos por enfatizar o nacionalismo, o livre mercado e a educação. Ele é o motor por trás da construção de um “novo” Islam na Turquia que é marcado pela lógica de uma economia de mercado e pelo legado otomano.[53] Seu nacionalismo é inclusivo e não se baseia em sangue ou raça, mas em experiências históricas e realidades políticas compartilhadas. Portanto, a comunidade do Sr. Gülen argumenta que o Islam é a religião da nação e não deve ser reduzida a ser a identidade de nenhum partido. Para o Sr. Gülen, O Islam não é um projeto político a ser implementado, mas um repositório de conhecimento e práticas para o desenvolvimento de uma sociedade justa e ética.[54]

O Sr. Gülen evita qualquer forma de confronto com o Estado. Em vez disso, seu principal objetivo não é reorientar o Estado em termos de percepções islâmicas, mas enfatizar um Estado que não intervém no livre exercício da religião ao mesmo tempo em que toma vantagem do poder da religião no combate das doenças sociais como violência e drogas. Ele afirma: “estou sempre do lado do Estado e do exército. Sem o Estado, há anarquia e caos”.[55] Ele encoraja continuamente suas audiências a respeitar o Estado, mas a não se envolverem em política partidária. O Sr. Gülen é um defensor do regime democrático e argumenta que a democracia é a forma mais apropriada e efetiva de governo no mundo globalizado. Ele diz explicitamente que:

A democracia e o Islam são compatíveis. Noventa e cinco por cento das regras islâmicos trata da a vida privada e da família. Apenas cinco por cento trata de assuntos de Estado, e elas só podem ser conciliadas no contexto da democracia. Se algumas pessoas pensam em alguma outra coisa; como um Estado islâmico, a história e condições sociais desse país não o permitirão. A democratização é um processo irreversível na Turquia.[56]

Ele continua defendendo que seus ouvintes respeitem o governo e expressem sua opinião como nos países ocidentais mais desenvolvidos e democráticos: por meio do voto.

A Evolução do Movimento Gülen

Acadêmicos que estudam movimentos sociais concordam que os elementos de um movimento devem ser “encubados” por um tempo antes que ele surja em público como movimento social reconhecível.[57] Por causa de sua pregação e mensagens gravadas, as ideias e inspiração do Sr. Gülen tornaram-se bem conhecidas na Turquia no início da década de 1980. Números cada vez maiores de pessoas juntavam-se aos sohbets inspirados por Gülen, círculos locais de pessoas que se encontravam regularmente para discutir as ideias dele, para dar início às repúblicas de estudantes e cursos pré-vestibulares sugeridos por ele, financiar esses e outros projetos sociais e estabelecer uma rede de relações comunitárias informais entre cidadãos com ideais semelhantes. Essas redes de indivíduos, incluindo empresários com recursos financeiros para apoiar os projetos sociais, começaram a se formar lentamente em aldeias e cidades onde o Sr. Gülen pregava.

No início da década de 1980, empresários e educadores inspirados pelo Sr. Gülen responderam à crise da educação na Turquia, estabelecendo instituições como repúblicas de estudantes, cursos pré-vestibular, associações de professores, editoras e um jornal. Em meados dos anos 1980, havia recursos suficientes, incluindo redes informais de pessoas motivadas e contribuições financeiras substanciais, para acelerar os projetos sociais que já existiam e iniciar a construção de escolas e hospitais na Turquia. A partir de então, a mídia tomou conhecimento do movimento e reportagens jornalísticas sobre ele e suas várias atividades lançaram-no ao conhecimento público. É nesse ponto que a fase “latente” das atividades da rede deram lugar a uma fase mais visível e desenvolvida[58] e os membros começaram a esboçar a ideia de um movimento social. O público também começou a usar termos como “escolas Gülen” e “seguidores de Gülen”. O Sr. Gülen, no entanto, nunca se refere ao movimento como Movimento Gülen ou Comunidade Gülen, nem aceita tais nomes. Em vez disso, ele prefere que o movimento seja chamado de “servidores voluntários” ou hizmet, que significa servir aos outros ou movimento de humanos unidos em torno de valores humanos elevados.[59]

Na metade da década de 1980, as escolas inspiradas por Gülen eram reconhecidas em toda Turquia por prover educação de qualidade aos jovens. Estudantes dessas escolas passavam nos vestibulares nacionais em índices muito mais altos que o restante da população jovem, mesmo após frequentar outros cursos preparatórios. Além disso, muitos alunos do ensino médio das escolas dirigidas pelo Movimento Gülen ganhavam competições nacionais e internacionais de ciências. As Escolas Gülen, e o Movimento Gülen por trás delas, começaram a obter maior reconhecimento público e a atrair mais e mais participantes que viam valor nas ideias expressas pelo movimento. Foi nesse ponto, com o sucesso das escolas, que as atividades motivadas pelas ideias do Sr. Gülen sobre educação e serviços não políticos começaram a se amalgamar no que viria a ser conhecido como Movimento Gülen.

O colapso da União Soviética, em 1991, e a independência das repúblicas turcas na Ásia Central proveram o contexto no qual o Movimento Gülen tornou-se transacional. Em seus sermões do fim da década de 1980, o Sr. Gülen aconselhava cada vez mais sua audiência a se preparar para ajudar aqueles países que, em breve, conquistariam sua independência, a maioria deles de origem e língua turca. Em 1992, logo após o colapso da União Soviética, um grupo de empresários e professores inspirados por Gülen abriram a primeira escola no Azerbaijão. No mesmo ano, a primeira escola inspirada por Gülen foi aberta no Cazaquistão e, nos dois anos seguintes, mais 28 escolas foram abertas naquele país. Entre 1992 e 1994, participantes do movimento abriram escolas no Quirguistão, onde hoje há 12 escolas de ensino médio e uma universidade. Ao mesmo tempo, 20 escolas foram fundadas no Turcomenistão.[60]

Enquanto alguns participantes do movimento estavam ocupados abrindo escolas nas repúblicas turcas, outros abriam escolas semelhantes em países não muçulmanos na Europa Oriental e da antiga União Soviética, como Bulgária, Romênia, Moldova, Ucrânia e Geórgia. Outros voluntários estabeleceram escolas em países do Pacífico Asiático; Filipinas, Camboja, Austrália, Indonésia, Tailândia, Vietnã, Malásia, Coréia do Sul e Japão.[61] Um desenvolvimento fantástico do Movimento Gülen é que ele está ativo não apenas em países de herança turca e muçulmana, mas também aqueles de tradição cristã, budista e hindu. Kalyoncu argumenta que uma das razões para isso é o fato de que o movimento começou utilizando um discurso islâmico na Turquia, mas após certo tempo passou a enfatizar elementos seculares e humanistas em seu discurso, como qualidade de educação, aceitação empática dos outros e valores éticos universais. Ele conclui que apesar de o movimento ter se mantido islâmico no nível individual, no todo, ele é um movimento social secular.[62]

Durante os anos 1980, membros da nova burguesia da Anatólia inspirados pelos ensinamentos do Sr. Gülen começaram a investir na construção de instituições de ensino em toda Turquia. Nos anos 1990, o desenvolvimento político e econômico da Turquia sob as políticas do Presidente Ozal, assim como eventos políticos no mundo todo permitiram a criação de mais e mais rotas globais para expansão empresarial. A queda da União Soviética e o enfraquecimento do controle do Estado turco sobre a informação e o fluxo de capital aumentaram a migração de turcos para a Europa, e acontecimentos globais contribuíram para a transformação do Movimento Gülen de uma pequena comunidade na Turquia em um movimento ativista internacional apoiado por uma crescente classe de empreendedores abastados comprometidos com os ideais do Movimento Gülen.[63]

Já na década de 1990, não há dúvida de que os milhões de cidadãos que se uniam em torno das ideias de Fethullah Gülen e as centenas de projetos sociais apoiados por eles constituíam um movimento social. Ele forma o maior movimento baseado em religião na Turquia.[64] O que é surpreendente, contudo, é o fato de que o movimento, enraizado em uma identidade turco-islâmica, foi e continua a ser tão ativo em países não muçulmanos como em países muçulmanos. A explicação, provavelmente, reside no fato de que a infraestrutura do movimento, em termos de liderança organizacional, voluntários, doadores e inspiração por trás do movimento, ser transportada pela diáspora turca estabelecida em países de todo o mundo como estudantes, profissionais e empresários. Alguns deles migraram deliberadamente para estabelecer instituições inspiradas por Gülen em outros países; outros migraram por razões educacionais e/ou comerciais e continuaram envolvidos no movimento e seus projetos de serviço social quando se estabeleceram em um novo país. Conforme apoiadores e participantes do movimento se estabelecem em todo o mundo e estabelecem projetos relacionados a Gülen em qualquer lugar que estejam, povos não turcos aprendem sobre o movimento e se envolvem de várias formas. O resultado é que o Movimento Gülen é agora global em seu alcance e impacto.

Resumo Geral Sobre o Movimento Gülen

O Movimento Gülen é uma iniciativa cívica, um movimento de sociedade civil que não é uma organização patrocinada pelo governo ou Estado Ele não emerge como resultado de uma política governamental ou ideologia de Estado. Ele foi iniciado como um movimento baseado em religião, apolítico, cultural e educacional dedicado a dar oportunidades à geração jovem na Turquia. Ele se concentra na mudança individual e na educação do indivíduo. O movimento foca na consciência espiritual e intelectual do indivíduo, buscando formar um caráter interior que capacitará a pessoa para realizar mudanças na sociedade. Ele enfatiza o papel que a tecnologia e as novas redes globais podem ter na articulação de uma consciência muçulmana. O Movimento Gülen, portanto, diferencia a si mesmo de outros grupos muçulmanos por enfatizar uma forma não exclusivista de nacionalismo turco, livre mercado, abertura à globalização, progressismo na integração da tradição com a modernidade e sua perspectiva humanista.

Como uma pessoa profundamente enraizada tanto na tradição islâmica/otomana quanto nos aspectos benéficos da modernidade, o Sr. Gülen é um modernista religioso e um inovador social. Suas audiências tentam promover a ideia de que o Islam não está em contradição com a modernização, mas que a educação, ciência e tecnologia podem ser usadas junto com o Islam para promover uma sociedade mais justa e ética. Como resultado, o movimento é mais moderno e influente que qualquer outro movimento islâmico na Turquia hoje.[65]

O Movimento Gülen dá um exemplo no mundo muçulmanos não apenas com suas atividades, mas também em como gerar suporte financeiro para essas atividades. O uso de ideais e exemplos islâmicos básicos das vidas dos companheiros do Profeta, assim como valores tradicionais islâmicos de doação e hospitalidade fortalecem a posição e impacto do Movimento Gülen no mundo muçulmano. Apesar de o movimento ter sido iniciado na Turquia, em pouco tempo, ele cresceu em outras partes do mundo nas populações não turcas, não apenas com projetos educacionais, mas também em termos de atividades de diálogo inter-religioso.

O movimento nunca compactuou com proselitismo, coerção, terrorismo ou violência, ao contrário, ele enfatiza a mentalidade de mudança dos indivíduos por meio da ciência, educação, diálogo e democracia. Ele encoraja o entendimento e o respeito recíprocos e encoraja o compromisso voluntário dos indivíduos com a educação sólida e com contribuições e serviços altruístas.

A rede informal de pessoas inspiradas por Gülen, junto com os muitos projetos de serviço social que elas apoiam, dão origem a um sentimento de união em uma causa comum. Há uma solidariedade não pronunciada entre tais pessoas, assim como um sentimento de orgulho pelas instituições ligadas no Movimento Gülen. O resultado é um reconhecimento recíproco e público da identidade do Movimento Gülen. O movimento não tem rituais cerimoniais formais, símbolos, slogans ou uniformes que o identifiquem. Em vez disso, a participação no movimento toma a forma de círculos de amizade que encorajam um papel ativo na ação coletiva. Diferentemente de relações baseadas em relações familiares ou tribais, aqueles no movimento repousam na participação voluntária e ativa de indivíduos relativamente independentes. Essas redes de amizade facilitam e aumentam a disposição do indivíduo para se envolver em projetos de serviços sócias por meio de sua relação com pessoas de opiniões e intenções semelhantes. O resultado são inúmeras redes soltas de pessoas que são inspiradas pelos ideais do Sr. Gülen e motivas a apoiarem, de qualquer maneira que puderem, os vastos e variados projetos de serviço social na Turquia e no mundo.

As redes de serviço social operam independentemente e não a partir de uma organização centralizada, apesar de manterem conexões com outras pessoas no movimento por meio do compartilhamento de informações e de pessoas profissionalizadas. Informação, conhecimento e projetos circulam entre as redes e trazem certo grau de identidade coletiva ao todo. Como redes, em vez de organizações formais, o Movimento Gülen atrai apoiadores ou adeptos. Ele não tem adesão um registro de membros. Isso explica porque é impossível calcular o tamanho do Movimento Gülen.

O movimento é um agregado de redes concentradas em torno de quatro atividades principais: empreendimentos econômicos; educações educacionais; publicações e transmissões; e encontros religiosos. Os indivíduos envolvidos nesses projetos específicos vêm e vão e substituem uns aos outros, mas os projetos de serviço social continuam. Portanto, a continuidade do Movimento Gülen está na manutenção e sustentabilidade dos projetos de serviço social. A participação nos projetos em torno de um objetivo específico e os resultados tangíveis dos projetos fortalecem a coesão social, a confiança e a solidariedade.

 



[1] Um imam é um líder islâmico, com frequência o líder de uma mesquita e/ou comunidade islâmica, que lidera a oração durante encontros islâmicos. Imams são nomeados a mesquitas específicas pelo Estado.

[2] Fethullah Gülen. Kucuk Dunyam (Meu Pequeno Mundo). Entrevistado por Latif Erdogan, Zaman.

[3] Idem.

[4] Apesar de mesquitas e orações públicas terem permissão para continuar na Turquia “secularista”, na época, todas as outras formas de instrução e prática religiosa foram banidas, incluindo as escolas corânicas.

[5] Durante a primeira metade de sua vida, Nursi participou da vida política de várias formas. Durante a segunda metade de sua vida, após 1920, o que ele chama de “novo Said”, ele se retirou para um canto remoto da província de Van e dedicou-se à escrita do que, mais tarde, tornou-se o “Tratado da Luz”, um comentário temático de mais de 6.000 páginas sobre o Alcorão e a vida do Profeta. Até 1950, ele rejeitou consistentemente o envolvimento em política. Durante os últimos dez anos de sua vida, ele apoiou o Partido Democrático e a participação da Turquia na OTAN contra o que ele via como uma grave ameaça de ateísmo e materialismo filosófico da União Soviética e dos representantes dessas ideologias na Turquia, o CHP.

[6] Yavuz (2003a).

[7] Eyup Can, “Fethullah Gülen Ile Ufuk Turu” (Uma Viagem pelo Horizonte com Fethullah Gülen), Zaman.

[8] Agai (2005).

[9] Mardin (1989).

[10] Agai (2005).

[11] Cetin (2008).

[12] Aktay (2003).

[13] Kestanepazari é uma república de estudantes e escola corânica em que os alunos frequentava escolas públicas regulares e recebiam instrução adicional na recitação corânica e em ciências religiosas.

[14] Yavuz (2003b)

[15] Kalyoncu (2008)

[16] Cetin (2009).

[17] Bacik e Aras (2002).

[18] Agai (2005).

[19] Cetin (2008).

[20] Idem.

[21] Weller (2006).

[22] Muito do material desta seção se baseia nas entrevistas que Nevval Sevindi conduziu com o Sr. Gülen em 1997 e novamente em 2001, após os ataques de 11 de setembro em Nova Iorque e Washington. Elas foram publicadas em Sevindi (2008).

[23] Abu-Rabi (2008).

[24] Idem.

[25] Sevindi (2008).

[26] Gülen, Toward a Global Civilization of Love and Tolerance (Por uma Civilização Global de Amor e Tolerância), p. 202.

[27] Carroll (2007).

[28] Gülen (1998) p. 99-100.

[29] Michel (2005).

[30] Kuru (2003).

[31] Aslandogan e Cetin (2006).

[32] Cetin (2008).

[33] Gülen (2005).

[34] Sevindi (2008).

[35] Yavuz (2003).

[36] Sevindi (2008).

[37] Cetin (2008).

[38] Woodhall (2005).

[39] Unal e Williams (2000).

[40] Saritoprak e Griffith (2005).

[41] Saritoprak e Griffith (2005).

[42] Idem., p. 337.

[43] A Guerra Grécia-Turquia de 1919-1922 foi iniciada porque os Aliados Ocidentais prometeram à Grécia ganhos territoriais sobre o Império Otomano. Ela foi travada entre a Grécia e os revolucionários turcos, que mais tarde estabeleceram a República da Turquia, e terminou com a Grécia retornando às suas fronteiras pré-guerra e se engajando em uma troca de população com a Turquia sob as provisões do Tratado de Lausanne.

[44] As relações entre a Turquia e o país vizinho Armênia foram extenuadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1915) quando batalhas ocorreram entre os dois países. Os armênios sustentam que a Turquia executou um “genocídio” de mais de um milhão de pessoas; os turcos sustentam que um número semelhante de turcos morreu nos conflitos e que levaram à guerra e que as mortes de guerra dos dois lados foram resultado da luta nos dois lados.

[45] Fehtullah Gülen (1993).

[46] Gülen (2004) p. 249-250).

[47] Gülen (2004) p. 23.

[48] Idem, p. 262.

[49] Entrevista com Gülen, Saritoprak (2005) p. 466.

[50] Gülen (2005).

[51] Akyol (2008).

[52] Idem.

[53] Yavuz (1999).

[54] Idem.

[55] Entrevista com Gülen no Sabah, 27 de janeiro de 1995.

[56] Idem.

[57] Komecoglu (1997); Della Porta e Diani (1999); Melucci (1999).

[58] Komecoglu (1997).

[59] Cetin (2008).

[60] Kalyoncu (2008).

[61] Idem.

[62] Idem.

[63] Kuru (2005).

[64] Fuller (2008).

[65] Fuller (2008).