Gerações de Esperança – IGerações de Esperança – I

Reencontro Conosco Mesmos

O século XX foi um século de incessantes problemas, e o presente continua da mesma forma. Um dos problemas é tão profundo que nos faz esquecer todos os outros, é tão crônico e resistente a intervenções e tratamentos e tão urgente que não deve ser negligenciado. Esse sério problema é a negligência de nossos valores pelo nosso povo, especialmente os jovens. Se isso não puder ser completamente resolvido por mãos habilidosas, sem nenhuma perda de tempo, encontrar-nos-emos imersos em grandes males e infortúnios e, assim, sofreremos completo fracasso apesar das circunstâncias convenientes, enquanto novos eventos aparecerão nos momentos menos esperados para obscurecerem nosso destino.

Os cânceres da negligência, ignorância, indiferença, inadequação e fantasias de distanciamento e alienação em toda a comunidade apareceram na forma de nódulos, espalharam-se por metástase em um curto período de tempo, atingindo todo o nosso corpo rapidamente, fazendo-nos cair de joelhos. Isso aconteceu de tal forma que um “declínio” distinto ocorreu em cada círculo da sociedade e as cores de nosso povo empalideceram. Ó, quantas vezes fomos abalados por tais males! Quantas vezes sofremos o infortúnio da queda e da derrota! Quantas vezes nos deterioramos, vendo o destino sombrio a que estamos fadados! Quantas vezes tentamos expressar nossa raiva em tais situações! Quantas vezes nos sentimos impotentes por sermos incapazes de encontrar as palavras contra essas situações, sejam estas palavras infames e impróprias ou uma resposta adequada!Quantas vezes reprimimos e sufocamos nossa exasperação e palpitações tomando refúgio em Deus! Alguns de nós se debatem nas correntes de tais sentimentos, enquanto outros apenas podem culpar aqueles que caíram em desonra.

Contudo, em vez de culpar e caluniar tais pessoas pelos caminhos que seguiram, deveríamos tê-las acolhido com a promessa de uma vida nova e fresca. Saudando seu entusiasmo e excitação com respeito, ao mesmo tempo, deveríamos ter encontrado causas e desculpas razoáveis para as obsessões e delírios delas. Deveríamos ter tentado remover a atmosfera de raiva, violência e terror, dando a elas alguns direitos. Deveríamos ter preparado o terreno para discussão de assuntos que são comuns ou mútuos entre nós.

É fato que nossa sociedade abriga vários pensamentos, conceitos e filosofias. Portanto, enquanto avançávamos em nosso percurso nacional, cruzamos e fomos influenciados pelos trilhos franceses. Depois, nos emaranhamos nas abordagens e interpretações alemãs. Algum tempo depois, fartamo-nos no modo de pensamento inglês e, recentemente, fomos intoxicados pela filosofia americana. Assim, sempre colocamos barreiras em nosso caminho. É verdade que todos esses conceitos, interpretações e filosofias afetaram negativamente nossa cultura nacional. Contudo, é verdade, também que tal variedade e vivacidade sempre podem ser apreciadas como riqueza. Para mim, o importante é que nossa nação preserve seus próprios valores e que a nação revolva em sua própria órbita. Contudo, incapazes de avaliar tais culturas diferentes, cada uma delas considerada a mais recente síntese por aqueles que as apoiam, ficamos imobilizados e impedidos por ninharias, como o solo e pedras encontrados enquanto se escava uma mina. Assim como mineiros inexperientes procurando por um veio mineral – ou eles cavam o solo e a pedra e acreditam que o poço leva somente a rochas, deixando-o para trás sem ver a riqueza, ou não se interessam pelo veio porque acreditam que a mina é composta apenas de rochas –, até o momento, tivemos acesso a muitas fontes de luz, porém, em vez de analisá-las e utilizá-las da melhor forma para nossa iluminação, produzimos flamas e fogo, permitindo que este nos devore em vez de nos iluminar.

É estranho que alguns de nós, não importa quão ignorantes sejam, sempre subestimem os outros. Todos aqueles com mínima capacidade de pensar consideram a si mesmos filósofos. Aqueles que representam o poder tratam a razão e a lógica como supérfluos, mas continuam seu caminho como executores da força bruta. Aqueles na política fazem do partidarismo o objetivo final e sacrificam tudo por acharem que não podem existir sem ele. Nossas atividades socioculturais, políticas e econômicas nunca foram capazes de emergir do círculo vicioso de oposição e conflito na rede de inveja, ciúmes, competição e intolerância. Aqueles que têm menos maturidade do que um adolescente usaram brinquedos e ramos de oliveira para bater nas cabeças uns dos outros. Os jovens, em vez de reparar nosso crédito abalado e orgulho partido, usaram o dinamismo de seus espíritos contra sua própria nação e seu próprio povo, causando fissuras e feridas profundas no espírito da nação.

Por que isso acontece? Pergunto-me! Por que não amamos uns aos outros enquanto podemos? Por que não estabelecemos acordos e amizades de longo prazo? Por que não conseguimos compartilhar ansiedades, tristezas, aflições, alegrias, sucesso e felicidade? Pergunto-me se o esforço e a luta para ganhar corações é mais difícil do que o esforço e a luta no campo de batalha. Estaria o coração humano fechado para o amor, tolerância e aceitação dos outros? Hesitaria ele em abraçar e compartilhar? Estaria ele inclinado ao ódio, malícia, rudeza, intolerância, restrições e egoísmo? Não posso acreditar que isso seja verdade! Juro por Deus, Criador dos corações, algo tão rico e profundo não pode estar fechado às virtudes e aberto ao vício.

Os grandes conquistadores do mundo começaram com a conquista de corações. Sua primeira parada sempre foi o coração das pessoas e, usando aqueles corações como base e porto, eles navegaram para outras partes do mundo. Se eles não tivessem, primeiro, entrado nos corações dos povos da Anatólia, não teriam vencido, em Manziquerta, a batalha entre o Estado Seljúcida e os bizantinos em 1071que abriu os portões da Anatólia aos muçulmanos. As defesas de Constantinopla não teriam cedido ao ataque se eles não tivessem sentido as promessas dos corações dos soldados pulsando com sinceridade. A rede de amor e compaixão, que emergiu primeiro como emoção e interesse e depois tomou controle de todos os corações e povos, recebeu e tolerou aqueles que correram para ela de livre e espontânea vontade, fazendo-as ouvir lendas de amor e afeição.

Então, se esse ódio, malícia, inimizade e intolerância não estão em nossa história, de onde eles vieram e como se infiltraram em nosso povo? Se sentimos profunda admiração pela França, Alemanha, Inglaterra e, mais recentemente, América e Japão, por que nos odiamos e nos arruinamos mutuamente e vivemos como lobos, devorando-nos uns aos outros? Temos um desvio de personalidade? Dizemos “Sim, e podemos, facilmente, refugiar-nos em almas estrangeiras”. Assim, jogamos fora valores milenares em nome de uma fantasia.

Ao mesmo tempo em que criávamos caos para nós mesmos, muitas gerações sem base, apoio, rumo, objetivos, ideais ou, é claro, conhecimento espiritual cresceram como crianças de caprichos, ambições, desejos e devaneios fantásticos. As gerações que perderam todas as considerações metafísicas, não estão cientes de sua identidade nacional e continuam a viver iludidos na crença de que encontraram a resposta para a questão “quem sou eu?” nas filosofias descartáveis e antiquadas furtadas dos sete continentes. Elas se debateram no fluxo e refluxo das correntes da matéria, viveram caladas e sem coração e, de tempos em tempos, confundiram religião com contos épicos e lendas históricas. Tais gerações sacrificaram a moralidade com a chegada da permissividade, mancharam o entendimento da arte com as cores da luxúria, transformaram a poesia e música em impudência e, finalmente, encontraram-se no meio de uma arena de extermínio no qual inúmeras contradições e conflitos guerreiam impiedosamente entre si. De fato, as consequências não podem ser pensadas de outra forma.

Essas gerações atacaram a tudo com ira e fúria, denegriram e desprezaram nosso passado, perderam sua confiança e sua integridade de caráter assim como sua fé e sentiram profundamente a perda e a ausência de afeição e de sentimentos humanos. Além do mais, naquele período, elas se renderam às mãos de consciências estrangeiras. Sua criação e educação foram delegadas países estrangeiros, que as educaram em suas creches quando bebês, fazendo-as ficarem mais próximas de estranhos do que de nós. Tais pessoas foram vítimas de diferentes ideologias, estremeciam-se por causa da distância e frieza entre si, apesar de estarem perto o suficiente para sentirem o calor corporal umas das outras. Essas são as pessoas cuja fé foi trespassada por milhões de dúvidas e incertezas, cuja confiança foi abalada em suas fundações, cujas esperanças foram desviadas em confusão, cujos corações eram como um leito seco de rio, cujos sentimentos humanos foram confiados ao ódio, malícia e animosidade, cujos corações tornaram-se a órbita e o terreno de caça de tantos medos. São pessoas que sempre foram entregues às marés da falta de propósito e objetivos e foram, portanto, derrotadas pela distância e cujos horizontes foram imersos na escuridão, sem esperança de iluminação. Gente que, mesmo quando ascendiam, declinavam e tornaram-se falsas, artificiais e temporárias, como se sua essência tivesse sido extraída e elas permanecessem de pé apenas com uma casca.

Na verdade, é muito difícil soprar vida em tal cadáver ambulante, pois ele está alienado de nossa essência e age contra seus próprios valores. Por outro lado, apesar de tudo, cabe a nós, mais uma vez, apoiá-lo e melhorá-lo. Acreditamos que quando a Vontade Divina fluir em nossa força de vontade, esse cadáver levantar-se-á como se ouvisse a trombeta de Israfil[i] e clamará mais uma vez sua bem-aventurança, prosperidade e felicidade. De fato, não será fácil preencher o vazio e reparar os danos produzidos no corpo da sociedade pela grande negligência dos últimos séculos. Contudo, os herdeiros de pensamento, que conseguiram tantas vezes transformar não apenas seus próprios infortúnios, adversidades e desgraças, mas também os daqueles que foram oprimidos, injustiçados e maltratados, certamente superarão tal infortúnio terrível e estabelecerão um paraíso pacífico e próspero para os outros enquanto habitam este mundo de necessidades básicas. Naturalmente, tais pessoas preencherão os vazios da sociedade com a expansão de sua tolerância e leniência: essa é a responsabilidade deles. Eles ignorarão os defeitos dos outros, olhando para eles através das lentes de seus próprios defeitos, que talvez sejam a causa dos defeitos alheios. Sem pressão, maus-tratos e sem fazer os outros sofrerem com a culpa de seus defeitos, tais herdeiros demonstrarão inúmeras alternativas para que as pessoas se livrem de suas faltas, além de alternativas para reabilitação e melhoria.

Sabemos que não é possível mudar tudo de um dia para outro, não esperamos por um milagre. Em uma sociedade cujos valores foram subvertidos há tanto tempo, uma sociedade acostumada com a discórdia, será necessário mais do que um pequeno esforço para substituir o ateísmo pela fé, a arbitrariedade pela disciplina, o caos pela ordem, a imoralidade pela moralidade, a luxúria pelo amor a Deus e os interesses e ganhos pessoais por altruísmo. Temos certeza que a erradicação do ateísmo, que há muito se senta no trono da fé; a erradicação do comportamento demasiado livre e fácil, que derrubou os valores morais; e a erradicação da depravação e improdutividade, que lucra com a falta de disciplina, não é e não será fácil. Não é fácil substituir tudo isso e estabelecer em seu lugar aquilo que Deus deseja e que o Profeta aconselha. Pois, todos os critérios que fazem das massas uma sociedade e que fazem da sociedade uma verdadeira sociedade foram desviados por ideologias desvairadas, pensamentos niilistas, delírios provocadores em todo o mundo. Ao mesmo tempo, um senso de responsabilidade foi erradicado de nossos corações, e a juventude vigorosa bebeu a contento da boêmia. Todos os dias uma nova fantasia arrastava as massas atrás de si. Certos espíritos independentes, livres e de natureza intoxicada expressaram sua provocação, rejeição e desprezo por todos os nossos valores, permitindo-se levar pelas correntes cuja direção e destino sempre foram incertos.

Agora, cabe a nós, a todos que amam este país e este povo, eliminar toda essa desordem e despertar nossa atividade estagnada de acordo com os horizontes de nossa própria filosofia. Evocando a parte mais íntima do espírito nacional e usando ao máximo nossa força de vontade – com uma resolução afiada por tantos anos de opressão, injustiças e maus-tratos e a exemplo dos apóstolos de Jesus e dos primeiros muçulmanos –, deveríamos dizer “Sigamos adiante” e deveríamos ir a toda parte com a compreensão de que “onde há uma pessoa, deveria, também, haver fé, consideração pelos outros e conhecimento”. Assim, deveríamos fazer nossas vidas ganharem a profundidade da mudança, de uma imigração para outra. A partir deste momento, deveríamos tentar tecer a renda de nossas vidas na tela do pensamento e da ação como os heróis da verdade que ganharam a graça de Deus.

Acreditamos que quase todos na Terra apreciarão e admirarão as mãos estendidas a eles por corações de tal calibre. Se forem bem-sucedidos, os possuidores de tal vontade madura, confiável e digna serão os porta-estandarte de nossa religião, país, linguagem e ideais. Eles viajarão o mundo, serão como Khidr onde quer que forem, e aquilo que eles apresentam às pessoas será aceito e consumido como o elixir da vida. Aonde quer que eles forem, serão enviados ao infinito numa amizade como a de Moisés e Khidr, construirão defesas e muralhas para aqueles que esperam o Dhu al-Qarnayn[ii] e apontarão os caminhos que levam à ressurreição dos reclusos que passaram suas vidas em cavernas. Quem sabe? Talvez eles sejam os primeiros a levar os raios dos pensamentos dos mestres aonde quer que forem, a mais abrangente Renascença. É isso que se espera há séculos.

 

 



[i]Israfil (Rafael) é o arcanjo que soará o Sur, a trombeta, no Dia da Ressurreição.

[ii]Dhu al-Qarnayn: “Ele que tem dois chifres”. Seu nome é mencionado no décimo oitavo capítulo do Alcorão. Várias fontes apontam-no como um mensageiro ou profeta. No entanto, ‘Ali, o quarto Califa, diz que ele não foi profeta nem rei, mas, sim, um servo virtuoso de Deus.

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